A psicanalista Vera Iaconelli escreveu um texto elucidativo em sua coluna na Folha de S. Paulo, de título “‘Mãe narcisista’ é uma expressão que merece ser discutida: Elevar o termo a uma categoria pretensamente diagnóstica é a cereja do bolo da injustiça contra as mulheres”.
Uma página com muitos seguidores no Instagram cometeu um erro de interpretação e divulgou um print do título, com uma legenda defendendo o uso do termo.
Claro que não tardaram a surgir os comentários validando a legenda, o que é muito natural por estarem enviesados pelos pressupostos da legitimidade e do lugar de fala.
Esse texto (que virou um vídeo no Instagram) é minha contribuição para a discussão, pois há tempos me incomoda o uso desse termo para todo e qualquer comportamento negligente ou violento, mesmo em outros contextos e grupos.
Vamos lá.
Existem mães que são narcisistas? Sim. Assim como existem filhos, pais, amigos, namorados, etc. Isso porque existem pessoas que são narcisistas e se tornam mães, pais, maridos, etc.
É coerente criar uma categoria para cada um desses grupos? Não. Até porque a categoria em questão já existe: Pessoas com Transtorno de Personalidade Narcisista. O que corresponde a cerca de 6% da população geral. Desses, cerca de 70% são homens. Quando diagnosticadas, essas pessoas precisam ser tratadas, não afastadas da sociedade, como parece se pretender.
No entanto, esse texto não é para discutir sobre um transtorno devidamente diagnosticado, e sim sobre a generalização de quem fala "narcisista" como quem fala "virose".
Afirmam, por exemplo, que uma suposta "mãe narcisista" destrói a vida de seus filhos. Posso deduzir que ninguém tem esses diagnósticos.
Além disso, cadê o pai? Como ele deixa que seu filho seja destruído por essa mãe? Ou será que ele é parte dessa destruição mas não é mencionado, como de costume?
Fala-se de como um adulto pode ter dificuldades por ter sido criado por uma pessoa assim e que precisa se cuidar e tratar para não fazer o mesmo aos seus filhos. É isso.
As pessoas que tiveram filhos antes de nós também precisavam ter se cuidado e se tratado para não fazer isso à nossa geração, mas pouco valor era dado à saúde mental, não se tinha o acesso a informação e profissionais de saúde que se tem hoje.
Até a década de 1920, as crianças eram tratadas como adultos pequenos. Minha abordagem psicológica, a TCC, só foi desenvolvida na década de 1960. Só em 2020 o CFP desburocratizou o atendimento psicológico online. Quero dizer que pessoas nascidas no século XX viveram muitas transformações rápidas, difíceis de acompanhar.
Hoje, por toda essa evolução, sabemos o que houve conosco, o que nos feriu. Nossos pais não sabem e podem ter feridas que não foram curadas e repercutem em nós.
O século XIX é “anteontem”, se considerarmos que a forma como vivenciamos as emoções perduram por até 4 gerações, dados os padrões de transmissão familiar.
Então, a quem leva a sério a dor provocada a uma pessoa que tem um dos pais "narcisista": Já pensou que essa dor pode estar apenas sendo passada adiante? Consegue entender que não é possível considerar uma única pessoa como "a fonte de todo mal"?
Precisamos parar de desumanizar pessoas, tanto para o mal quanto para o bem. A vida não é polarizada. Quem comete um crime não é um monstro. Quem faz uma caridade não é um santo. Somos todos seres humanos fazendo coisas boas e coisas ruins. Nosso esforço consiste em fazer mais coisas boas do que coisas ruins. E engajar numa “caça às bruxas”, certamente, não é uma coisa boa.
Podemos, sim, tomar distância e todas as medidas justas e necessárias sobre quem nos faz mal. Mas não podemos dedicar a vida a puni-los, pois dessa forma não encontramos a força necessária para buscar ajuda, nos curarmos e não ferirmos outras pessoas.
Por esses motivos, eu estou sempre alertando sobre a movimentação que os pais, mães e quaisquer pessoas que cuidam de crianças precisam fazer para se desenvolverem enquanto seres humanos e se tornarem capazes de dar às crianças, hoje, mais do que elas precisam, independentemente do que tivemos.
Lembrem-se sempre de que não aprendemos sobre as pessoas a partir de um viés autocentrado, pois a nossa história pessoal não determina a realidade de outros.
Acima de tudo, devemos questionar e criticar afirmações categóricas sobre aquilo que não conhecemos. Procurar e reivindicar fontes confiáveis.
As “transformações rápidas e difíceis de acompanhar” apenas iniciaram. Precisamos ficar atentos.
Eu tive uma mãe narcisista e posso dizer com certeza que existe sim e essa classificação ajuda muito quem passou por isso.